Algumas dioptrias

Só quando começou a escola é que a criança ficou a saber que não via como deve ser. A professora chamou os pais e disse-lhes que o filho precisava de óculos, porque nem sentado na fila da frente conseguia distinguir as letras escritas a giz no quadro da sala de aula. Os pais sugeriram se o problema não podia ser ele não saber mesmo de qualquer maneira distinguir as letras, afinal é o primeiro ano. A professora riu-se, achou piada à maneira como foi feita a sugestão. Uma teoria alternativa que até podia, como uma metáfora, explicar a falta de visão da criança, não fosse o diagnóstico inicial estar evidentemente certo. Era até um bocado ridículo procurar alternativas. A criança precisava de óculos e os pais foram com ela ao médico.

Depois do médico fazer o famoso exame, que de resto era muito idêntico à maneira como a professora descobriu a deficiência visual da criança, foi passada a receita. Enquanto escrevia o médico foi dizendo em voz alta, distraidamente à maneira dos médicos experientes, o que a criança tinha. Logo se arrependeu, ao deparar-se com uma profunda e grave falta de conhecimento da parte dos seus interlocutores.

– Desculpe senhor doutor, mas eu não sei o que são dioptrias. Nem nada do que o senhor escreveu na receita.

-Não se preocupe, há felizmente para si quem saiba. Enquanto houver alguém que saiba não se precisa de preocupar. Preocupe-se com a sua profissão, e deixem lá o resto. Para os outros.

O que se podia esperar mais do médico. Não se pode enfiar cinco anos de estudo intensivo de medicina na cabeça de alguém durante o tempo que demora uma consulta. Não é possível. E também nunca acontecerá toda a gente saber tudo o que toda a gente sabe. Ao sair do consultório, apesar de não saberem porquê, sentiam um peso no espírito. O peso que sentiam era o da desigualdade social, era o peso que sempre esteve nos ombros de uma parte da sociedade, para que a outra se possa sentir mais aliviada. Como quem transporta em grupo um armário e deixa de fazer força, sem que os outros saibam. Os outros sentem que o armário ficou mais pesado, mas não sabem porquê. Talvez seja o fracasso, talvez tenha sido a pega, ou alguém perdeu a força. Ninguém diz nada, ninguém se queixa. Talvez por vergonha, custa admitir que se está cansado. Claro que tudo isto só é possível enquanto a tarefa continua a ser suportável.

Os pais da criança sentiam isto. Sentiam que a vida é dura, e pesada. Pensavam como dever ser bom ser aquele médico. Sentado naquele consultório, onde pode descansar entre as consultas. E durante as consultas é ele quem manda, ninguém lhe diz o que tem de fazer, e ninguém sabe nada que ele não possa saber. Já no oculista, depois de pagar a conta dos óculos, lentes e a armação mais em conta, pois se ainda não deu para perceber, era gente pobre. O pai sem fazer contacto visual com a criança disse “agora com estes óculos quero só boas notas na escola, já não tens desculpas”. A criança tentou olhar para o pai, mas ficou tonta e zonza com a nova graduação. Ia precisar de algum tempo até conseguir ver bem o mundo como ele é.

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